quinta-feira, 28 de março de 2024

Pedagogia da surra

           No meu círculo de relações, de gente nascida nas décadas de 1950 e 60, é comum escutar histórias de surras. Às vezes dadas pelo pai; outras vezes, a mãe. Não dá pra dizer quem batia mais. Muitas vezes os pais usavam um chinelo para executar a “tortura”, mas na maioria das vezes era a palma da mão mesmo – e não necessariamente na bunda, mas em qualquer parte do corpo. Em raros casos, a cinta servia de instrumento e, mais raro ainda, o relho ou um galho de árvore.

Alguns têm lembranças tristes desses episódios, um e outro até sente dificuldade em lembrar e ainda há quem fale com lágrimas nos olhos. Mas, de modo geral, a coisa está assimilada. “Era o modo como nossos pais encaravam a difícil tarefa de educar e a coisa não foi tão ruim” – parece ser a conclusão. Somos velhos, estamos na faixa dos 60, alguns entraram nos 70, e nessa idade as coisas que nos fizeram sofrer já não doem tanto (na maioria das vezes).

– Eu aprontava muito – me disse um amigo – o velho não sabia o que fazer e sapecava o relho no meu lombo. Acho até que ficava mal com o troço. Mas eu aprendi. Ah, se aprendi.

Uma amiga, porém, até pouco tempo atrás precisa segurar o choro ao falar da mãe surrando-a com qualquer coisa que estivesse a mão.

– Ela ficava fora de si, completamente fora de si – explicava, complementando que a mãe não sabia o que estava fazendo. – A vida dela degringolava, nada dava certo e acho que ela descontava em mim.

Uma geração que foi moldada por uma pedagogia que colocava a surra como instrumento de educação. Coisa que as novas gerações nem sabem o que é.

Minha mãe, que era professora primária – formada pela Escola Complementar de Pelotas, no início da década de 1940 – contava que era difícil dizer para os pais dos alunos não baterem nos filhos.

– Castigos físicos não educam – ela costumava dizer – só causam ressentimento. Meus pais nunca me bateram e depois eu aprendi na escola que essa era a atitude correta. O pai de vocês foi criado a base de surras (prática costumeira entre famílias de imigrantes italianos) e sempre me opus a isso. Ele demorou muito a mudar, mas mudou. Foi um sacrifício para ele, mas entendeu.

           Eu lembro do meu pai surrando meu irmão mais velho, uma ou outra vez erguendo a mão para me bater... e não sei mais se ele me batia ou não. Parece que só ameaçava. Mas essa ameaça, às vezes, eu sou capaz de recordar como uma verdadeira surra. Pois dói, dói muito, lembrar o rosto do pai atormentado pela raiva, uma raiva direcionada a mim.      

domingo, 24 de março de 2024

Mundo rural

        Nasci e cresci em Pelotas. Sempre vivi em zona urbana. Minha mãe teve os primeiros sinais do parto quando estava no Cineteatro 7 de Abril e ela e o pai saíram na metade do filme e foram para a Santa Casa. O médico dissera que seria feito cesariana e não repetiria o que fizera no nascimento do meu irmão mais velho, isto é, tentar um parto normal. “Um parto muito mais tranquilo”, a mãe acentuava, sem o sofrimento da primeira vez. 
       Morei na Rua Uruguai, esquina com Santa Cruz, na Zona do Porto, até os onze anos. Vivia numa casa com quintal a meia dúzia de quadras do Canal São Gonçalo e passear no cais do porto (visitar os navios da Marinha), tomar banho no Canal (no Clube Regatas) e ir ao cinema aos finais de semana eram o meu roteiro habitual. 
       Lembrei disso outro dia, enquanto ouvia a conversa de duas colegas de trilha (ambas por volta dos 60 anos). Caminhávamos pela região serrana (próximo a Santa Maria, onde moro atualmente) e elas falavam das suas vivências no mundo rural, na infância, bem ao contrário de mim que sempre fui urbano. Uma nasceu em casa, a outra no hospital. E tiveram infância com banhos em sanga e arroio, sem cinema nem TV. Hoje vivem em Santa Maria e revivem as lembranças da infância com nostalgia e algum alívio. 
       – Minha mãe teve o primeiro filho em casa e foi tudo muito trabalhoso – disse uma delas. – Quando eu nasci, estava tudo arranjado para o parto ser no hospital. Nem a mãe nem o pai queriam repetir o sofrimento vivido no nascimento do primeiro filho. 
      Elas lembravam as dificuldades da vida no campo (o pai de uma plantando arroz na Campanha; o da outra, batatinha, na região da Colônia), olhavam para e mim e repetiam que eu não sei nada disso. 
       – Não, não sei – concordei. – Meu pai era bancário; minha mãe, professora primária. E quase nasci num cinema – acrescentei. 
       Elas riram e contaram que até os onze/doze anos o cinema era coisa rara em suas vidas, “só nas férias e olhe lá”. Depois os pais desistiram das lavouras e vieram para a cidade. Um abriu comércio em Santa Maria, o outro foi ser representante comercial (viajando muito pelo estado) e a vida melhorou. 
     – No geral melhorou, mas foi difícil também – uma delas falou. E contou que hoje namora um viúvo, pequeno proprietário rural nas imediações de Santa Maria, e dirige mais de hora para chegar até a fazenda onde ele mora e trabalha. Passa pelas imediações das terras em que um dia foram do pai e ora sente saudades ora alguma tristeza. 
     – O pai penou muito, quis manter a propriedade deixada pelo meu avô, mas não aguentou. Vendeu tudo num dia em que estava agoniado com as dívidas no banco e acho que se arrependeu. Às vezes escuto meu namorado contando o que passa para manter a propriedade funcionando, rendendo... e lembro dele. Parece que conheço tudo aquilo. 
      É uma realidade que desconheço, sei apenas o que leio nos livros (o mundo rural é sempre presente na literatura, em Lopes Neto, Cyro Martins, Érico Veríssimo), e vou juntando dados para uma ficção que não sei se um dia realizarei. O drama de pequenos e médios proprietários rurais e suas famílias, dialogando com as heranças deixadas pelos avós. Às vezes conseguindo mantê-las, e outras tantas perdendo tudo, mas nunca a memória, a lembrança de um poço, de um campo ou de um pai mirando o horizonte, no qual o Sol acabou de se pôr e o céu está vermelho feito uma poça de sangue.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Dona Alice

 

Quando dona Alice soube que o filho caçula havia batido na mulher, achou que era hora de intervir. Isto era final da década de 1980, já existiam as delegacias da mulher e dona Alice temeu que a nora levasse o caso à polícia.

– Mas foi só um tapa no rosto – disse o irmão mais velho. – O Alfredo perdeu a cabeça e já se arrependeu. Não vai repetir

– Eu conheço teu irmão e sei que ele é incapaz de matar uma formiga, quanto mais bater na esposa. Mas sei bem que quando fica furioso, tal qual como o pai de vocês, ele perde a cabeça. E a Suzete, eu já vi, faz ele enlouquecer. Por isso te peço, encarecidamente, leva o teu irmão para o Rio de Janeiro e põe ele a trabalhar no restaurante que tu tens.

– Mas eles são casados! Eu não vou terminar esse casamento.

– Deixa comigo. Teu irmão está pensando em se separar e falei que eu pego o Pedrinho pra criar. Esse problema está resolvido, já disse pra ele. Tenho a pensão do teu pai e posso bancar essa despesa.

O diálogo acima é imaginário, mas a situação não. Dona Alice era minha colega numa escola estadual (no final dos anos 80, em Porto Alegre) e um dia ela desabafou comigo. E registrei o seguinte: o irmão mais velho de Alfredo tinha um restaurante em Copacabana, na Rua Xavier da Silveira, e foi nesse local que o Alfredo refez a vida. Ou deve ter refeito, sei lá. Me hospedei num hotel dessa mesma rua, dias atrás, passei uma semana como turista em Copacabana, e lembrei da história...

Na verdade, só lembrei de dona Alice (professora de Ciências, vigorosa e altiva, boa leitora de romances policiais) que mexeu com os pauzinhos (como ela dizia), acertou a separação do filho e a vinda dele para o Rio, para trabalhar com o irmão. Uma mulher capaz de fazer a roda do mundo girar ou, ao menos, intervir diretamente na vida dos filhos. Armou a separação de um, colocou o outro na obrigação de proteger o irmão, neutralizou uma nora pegando o neto para criar, e assim foi ajeitando as coisas como ela achava melhor. Recordo que ela me disse:

– O Alfredo está morando agora num apartamento pequeno em Copacabana e nem pensa em voltar. A Suzete morre de raiva de mim. Diz que eu armei tudo e eu falo que ela não conhece o marido que teve.

Conheci a Suzete numa manhã em que ela veio deixar o filho com a sogra, na escola, e confesso que não vislumbrei nenhum traço de mulher capaz de infernizar o marido. Era uma mulher de corpo bem torneado por roupas justas, muito ágil e determinada, bem simpática. Conversamos porque coube a mim receber o filho (eu era diretor da escola) e o guri ficou desenhando na minha sala até a avó terminar as aulas e vir pegá-lo para irem para casa.

Pois hoje o guri deve ter mais de 40 anos e Alfredo certamente é um velho de 72 ou 74 anos, talvez morador ainda de Copacabana. Talvez o homem que me atendeu no caixa de um restaurante onde jantei com minha companheira e bebemos Aperol. Olhei aquele homem bonachão no caixa do restaurante e pensei na hora: é o filho da dona Alice. Escapou de perder a cabeça, bater na mulher, ser denunciado na delegacia da mulher e ter a sua vida enroscada num caso policial.

Rua Xavier da Silveira, Copacabana.

– Meu filho não se perdoaria se batesse na mulher a ponto dela precisar recorrer à polícia – dona Alice me dissera.

Tive vontade de contar o caso a minha companheira, quando saímos do restaurante, mas fiquei desconfiado de que boa parte era fruto da minha imaginação. Seja como for, sempre pensei na minha colega como uma mulher sábia, mãe previdente e poderosa, dessas que os filhos nunca sabem (ou só sabem muitos anos depois) que os seus destinos foram tecidos por mães poderosas.

domingo, 17 de março de 2024

O avesso da pele

 

As secretarias estaduais de Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná afirmaram em nota que o romance O avesso da pele, de Jeferson Tenório, apresenta “expressões impróprias” e, por este motivo, recolheram o livro das escolas. A obra foi lançada em 2020, premiada pelo Jabuti, e selecionada e distribuída pelo PNLD, do MEC, para alunos de Ensino Médio. No Rio Grande do Sul também houve intenção de retirar o livro das salas de aula, por parte de uma diretora de escola estadual, em Santa Cruz, mas o governo estadual não endossou a iniciativa.

No caso do Rio Grande do Sul, a professora Janaína Venzon (a diretora de escola que se manifestou contra o livro) se justificou com o argumento de que, “nesse momento que a gente vive”, é muito difícil trabalhar uma obra com “esse vocabulário” com alunos menores de idade.

Quem conhece a realidade escolar sabe que a professora não está dizendo bobagem. A abordagem da sexualidade (seja com palavras impróprias ou não) é capaz de causar reboliço numa escola e tontear a vida de um professor. É preciso habilidade & coragem para encarar o assunto. Não estou justificando a censura, apenas comentando a respeito do mundo escolar. Por muito menos, uma novela juvenil de minha autoria (Jorge encontra Lilian, publicada de modo independente) causou um fuzuê numa escola de Ensino Fundamental. O personagem-narrador (a novela é escrita em forma de diário) utiliza a palavra “felação”, a mãe de uma aluna ficou sabendo, foi pra cima da diretora e a coordenadora pedagógica penou para justificar a adoção do livro.

A professora Janaína vive em Santa Cruz e, ao se referir ao “momento em que a gente vive”, certamente está se referindo ao peso do conservadorismo na cidade. Afinal, no segundo turno das eleições presidenciais de 2022, Bolsonaro obteve 60,15% dos votos válidos e, na certa, o moralismo rasteiro a que essa orientação política dá voz deve estar em alta. Assim, se o tema da sexualidade (com linguagem impropria ou não, volto a insistir nesse aspecto) já era complicado de abordar em sala de aula, com o bolsonarismo a coisa ficou muito mais complicada. A defesa da “inocência das crianças e adolescentes” é argumento que está na ponta da língua dessa gente e haja paciência para aguentar.

Dito isso, acrescento que li o romance quando foi lançado e nem lembro das cenas de sexo nem da linguagem que o autor utiliza. O foco da narrativa é o racismo, a violência policial, e isso (além da qualidade literária do texto, claro) é o que importa. No ano do lançamento fiz uma resenha do livro para o boletim do meu sindicato (SEDUFSM), que reproduzo a seguir.


         A temática da negritude está em alta e o romance O avesso da pele, de Jeferson Tenório (Cia. das Letras, 2020, 188 páginas) a atualiza no cenário sul-rio-grandense. Mais especificamente em Porto Alegre, considerada a cidade mais racista do país, segundo o narrador. Um narrador muito original, por sinal. Um personagem de 22 anos, negro e estudante de Arquitetura (cotista, como ele próprio enfatiza) que se dirige ao pai assassinado durante uma desastrada abordagem policial. Uma narrativa em segunda pessoa com uma força impressionante, capaz de conquistar o leitor nas primeiras linhas:

“Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim.”

O pai é um professor negro, nascido no Rio de Janeiro em 1971, que se radicou em Porto Alegre por volta de 1980. Veio para o sul com a mãe e as irmãs e foi morar na Vila Bom Jesus, na casa da avó. Sofreu as agruras por que passam aqueles que têm a pele negra, mas só tomou consciência do racismo quando foi aluno de Oliveira Silveira, num cursinho pré-vestibular. Logo com Oliveira Silveira (1941-2009), um dos fundadores do Grupo Palmares (na década de 1970) e uma das principais expressões da poesia que tematiza a negritude. Um professor, militante e poeta, que é referido diversas vezes ao longo do romance, numa clara homenagem ao seu papel no movimento negro (o Grupo Palmares foi quem primeiro propôs o dia 20 de novembro como data da Consciência Negra).

Pois o pai do narrador se faz um professor de língua portuguesa nas escolas públicas da periferia de Porto Alegre e, após vinte anos de magistério, se sente derrotado pelos adolescentes indisciplinados aos quais se propõe a ensinar. É sobre esse pai, então, que o narrador se debruça e o recompõe por meio da memória e da invenção. Um homem negro que foi massacrado não só pelo racismo (em especial aquele que se manifesta nas abordagens policiais), mas também pelo casamento (que se desfez após o nascimento do filho e que não foi superado até o fim da vida) e pela atividade no magistério público (o qual não lhe proporcionou a vida confortável que sonhara). Um homem que muitas vezes se escondia nos próprios pensamentos e que o filho vira ao avesso, num exercício doloroso de busca da sua humanidade. Uma humanidade que está além da cor da pele e que seus assassinos policiais foram incapazes de perceber.

“Estou reconstituindo esta história para mim”, afirma o narrador, o filho do pai morto. “Uma verdade inventada, capaz de me pôr de pé.” O avesso daquela imagem de homem negro, com atitudes suspeitas, que foi abordado por policiais do Batalhão de Operações Especiais, na periferia de Porto Alegre.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Forte de Copacabana

           

Estive no Forte de Copacabana dias atrás. Além da fortificação militar, há um conjunto de bares e restaurantes e até uma filial da Confeitaria Colombo. Fui a confeitaria para tomar café com minha companheira, depois de andar 60 minutos (cravados no relógio) pelo calçadão de Copacabana. Após o café, subimos até a parte externa da cúpula dos canhões para olhar a cidade e o mar. Uma vista e tanto. Com direito a tirar fotos e divagar a respeito da paisagem, dos canhões... e das invasões estrangeiras ao território brasileiro.

Estudante de Ginásio, fiquei fascinado pelas histórias de piratas na região, em especial aquela comandada por Duguay-Troin, em 1711, que ocupou a cidade por dois meses (e que li pela primeira vez num livro do Rocha Pombo). Acho que depois desse episódio não houve outra tentativa de invasão na baía da Guanabara e não sei qual o inimigo que os militares brasileiros imaginaram quando instalaram quatro enormes canhões no forte, antes da Primeira Guerra Mundial. Seja qual for, no entanto, uma obra monumental (das maiores realizadas pela engenharia militar brasileira) e que logo se tornou obsoleta devido ao avanço da indústria bélica proporcionada pela Guerra de 1914. (Grande Civilização Ocidental, nenhuma outra criou armas de destruição tão eficazes como a nossa!)

Na hora (caminhando sobre a cúpula dos canhões) disse para minha companheira que os canhões nunca dispararam contra um inimigo estrangeiro. Nunca houve qualquer tentativa de invasão. Mas descobri depois que os canhões foram utilizados para atingir um cruzador brasileiro na década de 1950. Um episódio estranho, mas corriqueiro na história da República brasileira, de tentativa de golpe de estado liderado por forças conservadoras temerosas pelo avanço de um líder progressista, e que passo a narrar a seguir (e convido o leitor a prosseguir, caso ele tenha interesse a respeito dessas chatices da história brasileira).

Em novembro de 1955, governava o Brasil João Café Filho, que assumira a presidência em agosto do ano anterior, devido ao suicídio de Getúlio Vargas.  Café Filho foi conivente com a oposição a Vargas (aquela mesma que o pressionou, pretendendo a sua queda) e chamou vários políticos da UDN para ocupar ministérios no seu governo. Isto, no entanto, não saciou a sede de poder dos udenistas. Contrariados pela vitória de Juscelino Kubistchek nas eleições presidenciais (em outubro de 55), a UDN e parte das Forças Armadas voltaram a tramar um golpe de estado. Café Filho sentiu a pressão e caiu fora, isto é, inventou um problema de saúde e se licenciou do cargo. (Recordo a professora Helga Piccolo abordando o episódio em alguma palestra, ironizando o modo como Café Filho deixou a presidência e tirando sorrisos da plateia. Uma professora inesquecível.)

Café Filho picou a mula, assumiu Carlos Luz (presidente da Câmara), sintonizado com os golpistas e pronto para concretizar qualquer coisa que barrasse a posse de Kubistchek (a UDN temia que JK retomasse a pauta nacionalista de Vargas). O general Henrique Teixeira Lott (Ministro da Guerra) percebeu a manobra e armou um contragolpe. Os setores legalistas das Forças Armadas apoiaram Lott e Carlos Luz teve que fugir do Rio de Janeiro. Embarcou no cruzador Tamandaré (com políticos udenistas, entre eles Carlos Lacerda, e centenas de militares), partiu em direção ao porto de Santos (de onde pretendia liderar o golpe) e, ao sair da baía da Guanabara, ficou na mira dos canhões do Forte de Copacabana...

Foi nesse momento que as canhoneiras funcionaram. Talvez seu único momento de utilização militar. Os tiros não atingiram o cruzador (que manobrou de forma hábil para escapar dos disparos) e a história teve um final feliz, isto é, não houve mortos na jogada. O Tamandaré chegou ao seu destino, os golpistas foram detidos no porto de Santos pelos militares legalistas, Carlos Luz foi deposto (mas não preso) e JK assumiu no ano seguinte.

Resumindo, os canhões do Forte de Copacabana só funcionaram para amedrontar um golpista e seus comparsas. Talvez um episódio emblemático da nossa história republicana, tão pródiga em golpes (e nem todos fracassados).

Acrescento, no entanto, que meu passeio ao Forte de Copacabana não se resumiu ao um “revival” da nossa história política. Foi um passeio de turista. Momento de se sentir num cenário privilegiado, de encantamento com o mar e com o Rio de Janeiro, e de poder compartilhá-lo com uma pessoa querida. Os canhões, quatro enormes canhões (dois de 305 mm, dois de 75 mm), não passaram de detalhes.


Turistas tirando fotos na cúpula dos canhões do Forte de Copacabana.
Ao fundo, os canhões de 305 mm.

domingo, 3 de março de 2024

As brasas

 

No romance “As brasas”, de Sándor Márai, um homem (um aristocrata do Império Austro-Húngaro) leva 41 anos para dirimir as dúvidas e apaziguar os sofrimentos relativos a um incidente ocorrido num amanhecer de 1899. Neste dia, durante uma caçada, quando ele e um grande amigo se aproximam de um animal a ser abatido, o aristocrata sente a arma do parceiro apontada para si. Sente que a arma é preparada com a intenção de matá-lo e logo depois abaixada. Um incidente que é a revelação de uma paixão ele não desconfiava e que desvenda naquele dia. O amigo e a sua esposa tinham um caso e naquela oportunidade ele seria morto.

O amigo desaparece (vai viver nos trópicos, no Extremo Asiático), o casal continua vivendo na mesma propriedade (são riquíssimos, moram num castelo), mas em aposentos bem distantes um do outro, sem jamais se verem. Poucos anos depois a esposa morre e o viúvo continua revirando as brasas dos sentimentos vividos tanto com o amigo quanto com a esposa. A guerra de 1914 o chama para o front, o Império Austro-Húngaro se dissolve e o homem segue na mesma toada. Passam-se quatro décadas (a Europa é engolfada pelo nazismo) e só então o velho aristocrata “vira a chave”, isto é, se desprende desse passado angustioso. Não encontra as palavras que o explique, mas se liberta. Ou, ao menos, fica aliviado. (A cena na qual ele permite que o quadro da esposa seja recolocado na parede, pois isto “não tem [mais] a menor importância”, me parece antológica.)

Li o romance nesta semana, encontrei um amigo psicólogo e recomendei o livro. Acho que ele pode ser lido como uma espécie de longa psicoterapia (tal como sabem ser longas as psicoterapias), na qual o paciente fala, fala, rumina, durante anos e anos, e um dia “a ficha cai”. As dúvidas tormentosas se dissolvem (sem encontrar necessariamente palavras que as expliquem), os sofrimentos (as brasas dos sentimentos vividos) se apagam e tudo mais muda da figura.

Um romance e tanto. Uma obra-prima. Sádor Márai (1900-1989) é um escritor húngaro e sua obra só passou a ter um reconhecimento mundial após a sua morte. No Brasil, a Companhia das Letras lançou vários de seus títulos (entre eles, “Jogo de cena em Bolzano”, tendo Giacomo Casanova como personagem principal) e talvez a dificuldade da língua húngara explique o seu desconhecimento entre nós, leitores de língua portuguesa. Este “As brasas”, por exemplo, foi traduzido da versão italiana.

 

- MÁRAI, Sándor. As brasas. Trad. de Rosa Freire d’Aguiar. SP: Cia. das Letras, 2021. 180 p.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Fantasias e delírios

 

Há pessoas para quem a vida não basta e precisam inventar alguma coisa que a melhore ou a torne mais suportável. Outras, de perfil mais realista, se contentam com a vida como ela é e a aceitam, sem grande inquietação. Um poeta é o típico integrante do primeiro grupo, envolto em um mundo de sonhos e imaginação, enquanto o engenheiro é a figura exemplar do segundo, expressão da mentalidade prática, lidando apenas com aquilo que pode ser pesado, medido e calculado.

Lembrei dessas considerações a respeito das mentalidades dominantes ao ter a infelicidade de conversar com um homem prático. Ou, pelo menos, com um homem cuja recente namorada me garantiu que ele era assim.

– Um típico engenheiro – ela me disse – lidando apenas com os aspectos práticos da vida e com muito êxito, por sinal.

Ela o conheceu recentemente, nos apresentou num bar da cidade e a conversa foi rápida. Eu mais ouvi do que falei. Minha amiga nos deixou para tratar de alguma coisa e de repente o homem estava falando de política, indignado com a operação da Polícia Federal a respeito do golpe de Estado urdido por Bolsonaro e me explicando a inconsistência das acusações.

– Uma farsa, uma perseguição política – acentuou. – Ora um golpe sem tropas e tanques nas ruas – chegou a dizer, ignorando as peculiaridades da estratégia neofascista em curso no país.

Minha amiga já me dissera que cansou de homens sonhadores e queria alguém pragmático. Foi dessa maneira que me falou dele e me espantei quando o sujeito enveredou para as criações mirabolantes dos bolsonaristas a respeito do 8 de janeiro de 2023, endossando o entendimento de que o quebra-quebra foi uma armadilha da esquerda.

– Os petistas já estavam dentro dos prédios do Congresso, do Palácio Presidencial e do Supremo Tribunal Federal, quando os manifestantes chegaram pacificamente – ele disse, acrescentando que iria me enviar os vídeos, se eu quisesse.

Não, eu não quis. Minha amiga voltou nessa hora e felizmente mudou o rumo da prosa. Certamente não era essa a conversa que ela desejava que eu ouvisse. O pragmático engenheiro que ela me propagandeara estava, naquele momento, enveredando para o campo das fantasias delirantes e não era essa a faceta do homem que ela admirava.

Fiquei calado. Este engenheiro pode ser muito prático para tomar as decisões quanto a sua empresa e colocá-la no mercado, mas, quanto ao resto, é só sonho e fantasia. Mais um adepto da utopia bolsonarista, que se imagina lutando contra o “comunismo petista” e pela afirmação da democracia e da liberdade. Provavelmente um engenheiro bem sucedido, mas incapaz de realismo político.

 A extrema-direita bolsonarista (que não acho mais exagero chamar de neofascista) está num brete e esperneia. Não assume o seu projeto autoritário e muito menos o quebra-quebra em Brasília como tática para um golpe que não conseguiu concretizar. A ideia dos petistas enquanto força maligna, dentro dos prédios antes da chegada dos manifestantes do 8 de janeiro, aguardando a massa bolsonarista para imputar-lhe um vandalismo que ela não desejava fazer, é de uma criatividade impressionante. Haja delírio e teoria da conspiração!

Carreata bolsonarista em Santa Maria, em abril de 2021.

Não sei como me despedi do casal, mas, quando dei por mim, estava com a mão sobre o ombro da minha amiga, penalizado com o que ela precisa suportar. E, sem perceber minha hipocrisia, sai desejando felicidade aos dois.